ALFREDO JERUSALINSKY: «GAÚCHO É O HOMEN DA FRONTEIRA QUE ODEIA FRONTEIRAS»


por Caue Fonseca

Psicanalista argentino, um dos fundadores da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (Appoa), tem um olhar aguçado sobre o Estado que o acolheu em 1977


Alfredo Jerusalinsky
Um dos fundadores da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (Appoa), acostumado a percorrer o Rio Grande do Sul e o Brasil para conferências e palestras, o psicanalista argentino Alfredo Jerusalinsky tem um olhar aguçado sobre o Estado que o acolheu em 1977. Ele é um dos convidados por Appoa e UFRGS para debater a identidade rio-grandense no evento NósOutros Gaúchos. Ao discorrer sobre o tema, ele mede as palavras, hesita e sorri: “Esta é uma entrevista perigosa”. Não quer soar desrespeitoso com quem o recebeu de braços abertos durante a repressão na Argentina. É por ter lutado contra uma ditadura militar, também, que Jerusalinsky repete a palavra “perigosa” para definir a atual situação política do Brasil. O psicanalista de 73 anos recebeu ZH em seu consultório para uma conversa que foi muito além da figura do gaúcho.

Costumamos buscar razões históricas, culturais, geográficas para explicar o gaúcho. O que a psicanálise tem a contribuir nessa discussão?
Sempre há motivos para que cada um seja como é. E para que se estabeleçam identidades coletivas. São diversos, e acabam por convergir e causar certas idiossincrasias. Há uma forma de simbolização que cada cultura escolhe, e essas escolhas estão orientadas por posições subjetivas muito profundas. A psicanálise estuda justamente a modalização dessas escolhas. O símbolo do gaúcho, como está na entrada de Porto Alegre (o Monumento ao Laçador), é engraçado de analisar porque a quantidade de gaúchos vestidos de gaúchos é escassíssima. Em Porto Alegre, a gente não encontra um! E em muitas cidades do Interior também não. Portanto, não é uma figura que se defenda pelo seu número.

Há quem defenda que essa figura nunca existiu…
Exatamente (risos). Assim como a coragem do gaúcho, que enfrenta os homens. “Não podemos se entregar para os homens”, como diz uma canção. De que homens se tratam? Quem são os homens? Seria algo assim como a polícia? Forças de repressão? Qual repressão seria essa? Se trata justamente de colocar em relevo a coragem individual. Como se ele fosse um desbravador das fronteiras. É ali que aparece uma razão simbólica para que seja essa a representação do habitante desta terra. Não pelo número de gaúchos que andam pelas ruas vestidos como tais. Esse tipo significa alguém solitário, ameaçado, com armas, com artefatos para suportar a intempérie prolongada, um andarilho sem destino. O seu principal inimigo são as cercas. O gaúcho é um homem da fronteira que odeia fronteiras. Odeia o que o limita.

Isso se dá apenas por uma questão geográfica ou porque o gaúcho se sente um pouco estrangeiro no seu país?

A figura do gaúcho que estamos falando, que está no monumento, resulta das imigrações. O imigrante, o colono, no lugar de colonizador, tem então de desbravar terras que não estavam incorporadas à vida humana e social. Podemos dizer que essa figura é equivalente à do cowboy dos Estados Unidos – e não se encontram cowboys pelas ruas de lá também, mas são simbólicos da costa oeste. O gaúcho simboliza uma região também. A imagem dele atravessa as fronteiras de Uruguai e Argentina. E lá é a mesma coisa. Também na Argentina não há gente vestida de gaúcho em qualquer lugar. Num shopping, certamente não. Povos que na Europa eram desencontrados chegam ao sul do Brasil e precisam se decidir: ou vão estabelecer novas fronteiras, à semelhança das que havia na Europa, ou vão fazer uma reabsorção das diferenças, tentando que elas prestem serviço às novas condições e ao domínio das novas terras, aproveitando o melhor de cada cultura. Essa contradição não termina de se resolver até agora. No Rio Grande do Sul, especialmente.

Estaria aí a origem da nossa dificuldade em chegar a consensos no Rio Grande do Sul?

Sim. Um conceito que Freud traz à tona, o do narcisismo das pequenas diferenças, é útil para podermos analisar quanto horror causa a um determinado sujeito quando um vizinho compra o mesmo carro da mesma cor que a dele. Isso apaga a singularidade desse sujeito, que ele com tanto trabalho construiu e defendeu. Essa chegada das diferentes culturas, elas se debatem, produzem miscigenação – uma língua nova, uma cultura nova – mas produzem também fragmentação, representações de minorias. Cada uma ocupa o seu lugar. Isso no Rio Grande do Sul tem expressões muito fortes. Gramado é uma cidade alemã. Tem as características das construções dos alpes. Caxias do Sul é uma cidade claramente italiana, de arquitetura entre moderna e clássica italiana. Agora, o que a gente vê em São Francisco de Paula, que é uma cidade, veja bem, gaúcha no meio das duas? É uma mistura das mais diversas. Há uma pizzaria que se chama London. E outra que se chama Marcos
(risos). Quer dizer, São Francisco de Paula não fez a sua escolha. O gaúcho é isso: um pária que não fez a sua escolha.

É por isso que ele odeia fronteiras? Porque não sabe em que lado dela ficar?
Isso. Não sabe se fica de um lado do muro, do outro, em cima, se tenta colocar uma perna de um lado e uma perna do outro… Entretanto, experimenta o horror de que se dissolva a sua cultura. Então reage fortemente. Ferozmente, eu diria, quando algo de sua suposta identidade é tocado. E sua suposta identidade, de repente, é um traço italiano, um traço português. Agora o modo de obter prazer que eu tenho, e que um português tem, e que um italiano tem é o legítimo. É o melhor. O modo de eu experimentar o prazer, a minha cozinha, é a melhor.

Não é contraditório que um Estado de pessoas desse perfil tenha gerado líderes em tantas áreas diferentes?
Políticos, técnicos de futebol, grandes empresários…
No gaúcho, o coletivo não permanece. O gaúcho não superou essa diferenciação de fronteiras e de minorias nacionais. Porém, o surgimento de políticos importantes no Rio Grande do Sul é porque é gente muito bem treinada em lidar com esse tipo de problema. Em algum momento, a pessoa teve de confrontar com essa fragmentação e tentar constituir um espírito coletivo. Esse trabalho é político. E desperta confiança na nação aquele que demonstra ter experiência em lidar com as diferenças. Porque o Brasil é um país com enormes diferenças. Os que pertencem a setores aristocráticos não têm a mesma confiança do brasileiro do que aqueles que atravessaram lugares em que tiveram de lidar com diferenças muito importantes. Dilma Rousseff foi escolhida por isso. Lula também. Mesmo Fernando Henrique Cardoso foi identificado como alguém que sabe lidar com diferenças, e não da estirpe aristocrática. Em outros países, é mais comum que pessoas de uma estirpe sejam escolhidas para ter poder. No Brasil, isso é mais complicado.

Já que entramos na política: o senhor desembarcou em Porto Alegre perseguido pela ditadura na Argentina. Como o senhor vê os protestos recentes? Como uma ameaça à democracia ou como uma demonstração de democracia?
A situação atual do Brasil é perigosa. Primeiramente porque está se discutindo uma forma de utilizar a lei para enquadrar o desejo de um grupo político. Ora, só este primeiro movimento jurídico já evidencia que o impeachment de Dilma é ilegal. O segundo motivo é colocar em risco não apenas a democracia, mas a unidade nacional. Desde o século 19, o Brasil vem fazendo um esforço de junção, de criar um espírito comunitário. O que nos admirava aos argentinos, em relação aos brasileiros, é que havia grande sensibilidade social entre os povos brasileiros. Aquilo que dizia Sérgio Buarque de Holanda, que a marca do brasileiro é a cordialidade, se aplicava não só em relação aos estrangeiros, mas também entre brasileiros. Esse espírito é o que imperou até um par de anos, quando se produziu um pensamento desarticulador baseado em ressentimento. O culpado pela redução do seu lucro é o vizinho – representado, nesse caso, pelo nordestino. Só que o nordestino está integrado à economia de mercado como qualquer outro brasileiro, isso é incoerente. É como no trânsito: cada condutor pensa que o culpado do seu atraso é aquele que vai à frente ou atrás.


O senhor vê relação entre os brasileiros de hoje e os argentinos de algumas décadas atrás? Cheios de si e logo depois decepcionados e ressentidos com um choque de realidade econômic
o?
Olha, nós argentinos sempre estivemos decepcionados de nós mesmos. Por isso cantamos tangos (risos), que são hinos às nossas perdas. Nós também somos frutos de uma imigração europeia, não havia culturas autônomas fortes como no Equador, no oeste da Venezuela… Europeus chegaram para fazer fortuna como no restante da América, adquirindo enormes latifúndios de terra ao custo da vida de índios, mas depararam com um território difícil. Na Argentina há riqueza, mas é preciso andar muito. Não é uma banana a cada passo. Então o colonizador não enriqueceu tão fácil. As gerações seguintes de imigrantes menos ainda, porque as terras já tinham donos. Viraram pequenos comerciantes. Então, sem fortuna, os colonizadores são marcados pela saudade de casa – porque o que é perdido sempre é idealizado – e pela decepção com a própria incapacidade de enriquecer. O espírito nacional da Argentina nasce nas décadas de 1940 e 1950 com (Juan Domingo) Perón, gostemos ou não dele.

Essa imagem que temos do argentino como um sujeito orgulhoso, um tanto falastrão, é uma formação bastante recente, portanto?

É uma formação reativa diante da decepção. Porque é um modo de manter a dignidade. Os povos derrotados são, de maneira geral, mais violentos e orgulhosos. Isso é uma verdade histórica. É o que nós, psicanalistas, chamamos de perda da guerra fálica, de perda da potência imaginária.

De novo, voltamos ao gaúcho…
Isso vale também para o gaúcho, sim. Mas não no sentido de se sentir decepcionado de si mesmo. O gaúcho, por exemplo, não é um homem pessimista. Pelo contrário. Em São Francisco de Paula se ouve a cada passo: “Vai dar tudo certo”. Então qual é o motivo da sua agressividade? É aquele temor pela perda de identidade. O grande problema do imigrante, e digo isso de minha própria experiência, é até que ponto vai o meu enraizamento. Por mais amor que eu tenho a ela, esta é uma terra estrangeira, que não me pertence. Então me sinto incessantemente ameaçado de perdê-la, mesmo tendo conquistado o que tenho trabalhando aqui. Quanto de imigrante se conserva depois da terceira, da quarta geração? Não é zero. Aqui cansamos de ouvir: “eu sou italiano”, e o sujeito é da terceira geração! Os outros é que são brasileiros (risos). Embora ele tenha curiosidade e desejo de se relacionar com alguém de uma cultura diferente, e digo isso citando Lévi-Strauss, inconscientemente surge o temor de que a minha identidade se perca.

O senhor já declarou que na cama do século 20 se deitaram Kant e Sade. A racionalidade contra o desejo. Este é um exemplo? Querer conservar a sua identidade e possuir o estrangeiro?

Sim, claro que sim. E veja que o que mais nos aterroriza é a pequena diferença. O que teme Eduardo Cunha
(presidente da Câmara dos Deputados), por exemplo, que é um inimigo tão feroz dos direitos homossexuais ou homoafetivos – me incomoda ter de usar esta palavra e não a outra porque a primeira soa errada. Qual é o problema de ser sexual? Não somos todos? Mas enfim… Voltando a Eduardo Cunha: ele pode argumentar, talvez, que Deus não quer isso. Mas como ele sabe que não quer? Posso argumentar de volta que se Deus não quisesse que um homem gostasse do outro, ele não os teria criado daquela forma. A pequena diferença é temerária pelo poder de me levar a questionar toda a minha identidade. A diferença entre um homossexual e um heterossexual é muito pequena: os dois estão preocupados em resolver o grande problema de todo mundo: a escolha do seu parceiro sexual e amoroso.

O senhor está prestes a publicar um livro chamado Amos e Escravos – Quem Manda no Mundo Hoje. Chegou a alguma resposta?
Lacan diz que na relação do sujeito com o significante é que se muda o curso da história. Ou seja, a relação do discurso com o social. O que se diz não é sem consequências. A palavra tem mais efeito do que a economia. A gente pode suportar a fome se o discurso for justo, mas não se ele for incoerente. Que o inglês seja a língua dominante do mundo não é um acaso, e não é uma simples consequência econômica. É um propósito de estabelecer um modo de simbolização e o modo de imaginação que corresponde à cultura da qual essa língua é originária. Assim fizeram os romanos. Os romanos diziam que a lei somente podia ser escrita em latim. Quem falava latim era cidadão. Quem não falava, não era. Vocês não têm escutado por aí que quem não fala inglês está ficando para trás? Não têm percebido que pensamos mais em inglês? Que sem falar inglês, não podemos participar dos aplicativos que regem a comunicação mundial? Quem manda no mundo e por quê? Está respondido.

Quem tem a palavra.
Quem tem a dominância no campo do discurso.
É por isso que a dominação da mídia é fundamental. Apoderar-se do governo da palavra. Então, quem manda no mundo? Há três grandes correntes de pensamento em vigor hoje no mundo: a poética francesa, o nacionalismo alemão e o pragmatismo americano. O domínio do discurso é do pragmatismo. É por isso que quando mostramos algo que compramos, não ocorre a ninguém perguntar o sentido daquilo para nós. Sempre nos perguntam: “Mas para que serve?” Essa é a pergunta fundamental do mercado. No campo da saúde, por exemplo, em vez de compreender uma doença mental, se busca primeiramente classificar. Porque classificar facilita a administração da loucura, não a cura da loucura. Administração quer dizer: em que lugar da burocracia a loucura se situa. A que o paciente tem direito, quantas horas trabalha. Se tem déficit de atenção, pode trabalhar apenas três horas seguidas, tem direito a remédios… A princípio, parecem ser benefícios sociais. A questão é que se decide sempre quem fica dentro e quem fica fora. O sujeito que não pode defender a sua permanência em uma classe psicopatológica pré-determinada está frito. Porque está fora. A esperança não é ter o diagnóstico de que está são, mas de que está doente. Porque se está, tem mais direitos. Se criam epidemias falsas. O pragmatismo tem esse tipo de consequência.

Onde entra a tecnologia nessa questão da dominação? Ou não entra?

O primeiro paradoxo é que a tecnologia surge para propiciar aos homens mais conforto, a ter menos trabalho, mas termina por diminuir o valor real do trabalho. O avanço tecnológico permite uma maior produção com menos pessoas, só que isso propicia uma maior concentração de riqueza a quem tem domínio da tecnologia. No final do raciocínio, de que vale uma greve de meia dúzia de funcionários rodeados por máquinas? Outro paradoxo da tecnologia é que os eletrônicos ocupam o centro da cena. Eles são a maior promessa imaginária da humanidade, neste momento. E quem governa as linguagens e os instrumentos eletrônicos têm grande chance de dominar a marcha do planeta. Mas é uma falsa inteligência, porque saber como a linguagem funciona não é saber como todo o resto funciona.

O senhor discorda da tese de que crianças nativas digitais, nascidas depois da internet, estão em melhores condições cognitivas dos que as de gerações anteriores. Por quê?
O equipamento eletrônico em si não é nenhuma personificação do mal. A questão é que ele entra pela via do mercado. O mercado tem como finalidade vender o mais possível, compra desde o acadêmico mais letrado até o analfabeto. Por isso também que ele é feito para ser manejado por crianças, não só por adultos. Mas a linguagem que usam esses eletrônicos é extremamente simples. Porque a parte complexa do problema fica oculta, é resolvida pelos chips. O programador é o inteligente. Nós damos o problema para o aparelho e ele resolve, e temos a ilusão de que quem resolveu fomos nós. Apertamos uma sequência que nunca passa de 12 botões. Isso fascina as crianças pela complexidade do resultado que obtêm com uma ação simplificada. Isso amplia a distância do não saber. A criança tem a ilusão de saber muito facilitada, e a interrogação sobre o saber do pai, da mãe, se reduz. Por que vou perguntar ao meu pai se eu tenho o Google? Sem falar das relações sociais, que se tornam enormemente facilitadas com o apertar de botões, e cria a ilusão de uma relação. Ilusão porque são curtas, não demandam ser sustentadas, se interrompem nas primeiras 15 palavras de um diálogo. Isso faz com que os tempos se acelerem: não há tanto tempo disponível para cultivar a relação com o outro. O outro pode ser cortado apenas com um botão. Não há atos de aproximação ou de distanciamento. Então ela não desenvolve a responsabilidade sobre o outro.

E o que esperar de crianças que se desenvolvem nessas condições quando adultos?

Sem relações com o outro, mas sim com o aparelho, surgem as condições para o autismo, por exemplo. Serão também adultos menos capazes de resolver problemas. E menos capazes de suportar a frustração, porque se acostumaram com respostas imediatas. Nesse sentido, é um rompimento geracional. Nós adultos defendemos os laços sociais, reais e simbólicos. A criança passou a defender os laços sociais imaginários, e eles crescem com artefatos que lhes dão boas razões para permanecer nesse território. Seguramente quem tolera menos a frustração é mais impaciente, mais agressivo. Portanto, mais propenso ao bullying, ao não reconhecimento da autoridade dos professores e dos pais. Ah, são adolescentes capazes de matar para preservar seus tablets! (risos) Estou exagerando, mas não muito.

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